Reflexões sobre nós - de Irene Capillé
Hoje cedinho peguei meu ônibus pra ir pro trabalho e com o firme propósito de estudar um exercício de rítmo (esse é meu único tempo disponível para isso), sentei naquele banquinho na frente, quase ao lado do motorista, pra fugir do olhar das pessoas me vendo fazer aqueles “táca-táca ..” baixinho ou marcando o tempo com o pé. (Não gosto daqueles olhares de “essa mulher maluca tá falando sozinha...”) . Mal comecei a estudar e uma voz aguda começou a cantar alto próximo de mim. Acabei de fazer o exercício num grande esforço porque o rítmo “dela” interferia no meu, (ainda necessito me concentrar muito para isso) e fechei o livro, desistindo, já que a idéia não era gastar todas as minhas forças antes mesmo de chegar ao trabalho. Resolví procurar então a dona daquela voz afinada mas de repertório duvidosíssimo. E surprise !!! Era nada mais nada menos que o motorista. Ele mesmo, mulato claro, magro, de óculos e aquela voz de tenor alto com agudos que deixariam nossas sopranos intrigadas.
Acalmem-se, não chamei o motorista para fazer parte do nosso coral, como muitos devem ter imaginado... Mas se alguém quiser, deve ser fácil achá-lo. Linha 438 (vermelhinho ), o motorista que canta o tempo todo.
Como não conseguia mais estudar mesmo, minha mente divagou ouvindo o cara e olhando a paisagem e comecei a pensar naquela fábula da Cigarra e da Formiga, que de alguma maneira me incomoda desde criancinha. Sempre achei que tinha algo estranho com ela, alguma coisa que nunca me bateu muito bem. Hoje, analisando melhor, (e com esse friozinho) pensei na imagem da pobre cigarrinha cantora no inverno rigoroso, as asinhas cheias de flocos pesados de neve, batendo na porta da formiga, aquela casa quentinha, aconchegante, da formiga que trabalhou o verão e o outono todo e agora recolhida no seu conforto doméstico. E a formiga olhando com aquele olhar blasé e meio vingativo naquela resposta clássica “cantou o tempo todo enquanto eu trabalhava, agora vai à luta, amiga, aqui você não entra”. E a cigarra sai tremendo de frio e a historinha acaba, com alguma “moral da estória” (valha-me Deus !).
Imaginem agora outra resposta da formiga, “Entra aí mulher, tira essa roupa molhada, toma um banho quentinho e se agasalha antes que pegue um resfriado e estrague essa garganta preciosa ! Vou te trazer um pratinho de sopa , você come e depois a gente toma um vinhozinho na lareira, tenho uns CD’s ótimos pra te mostrar, você vai incrementar seu repertório. Pode passar o inverno aqui comigo, mas não vai ser na moleza não. Fim de semana vai rolar um sarau aqui em casa e você vai cantar bonito , heim ? Você pode me dar umas aulas de canto, e na primavera a gente treina umas musiquinhas em dueto, que tal ? Quero impressionar um cara que eu estou a fim, que toca violão.
É isso aí minha gente, essa tem “moral da estória”. Vamos ensinar as crianças a “negociar”, a “ceder”, a “socializar”, a terem mais “humanidade”, a se entenderem , respeitar as diferenças. Arte é trabalho, e dos bons. O que seria do trabalho maçante e tedioso de carregar tantas folhinhas de baixo do sol, se não fosse o canto da cigarra, um refrigério para o ouvidinho cansado da formiguinha. Todos nós somos um pouco formiga, um pouco cigarra, varia a proporção para cada um. Chega de radicalismo !
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